Porque nunca leram nenhum meu:
O ar estava delicioso nessa manhã e o céu de um leve azul, tudo apontava para um dia perfeito. Tinha acordado com o sol a bater-lhe levemente na cara através das cortinas translúcidas, sem qualquer vontade de ficar na cama. Subiu pelo alçapão para o templo, vestido com ar e vento, e sentou-se a meditar durante algum tempo. Eram quase oito da manhã quando voltou a assentar a cabeça nos ombros, e decidiu sair para a rua. O sol brilhava com suavidade, estava uma temperatura amena, e o ar estava delicioso nessa manhã.
Apoiou-se levemente no carvalho que lhe guardava a entrada, e sondou os arredores. Tinha acabado de sair do transe, era-lhe fácil sintonizar-se com a floresta. Nem uma pessoa se avistava “Melhor” pensou de si para si “É da maneira que não me tenho que preocupar com roupas.” Feliz por poder andar em liberdade, sem o perigo de encontros inesperados, decidiu ir dar um mergulho no lago. Ficava a um par de quilómetros de casa, mas isso era um quase nada para ele. E se hoje fosse uma cobra? Decidido, transformou-se. Uma cobra de um azul profundo, com duas listas amarelas a rodear-lhe os olhos e a correr-lhe ao longo do corpo. Era uma das vantagens de poder andar sem roupa: não se tinha de preocupar com ela quando se transformava.
Partiu, deslizando, com a terra a ronronar-lhe de encontro à barriga, e com o sol a escorrer-lhe pelas costas. A floresta já estava acordada há algum tempo, e o calor tinha posto as cigarras a cantar. Foi andando, embriagado pelo cheiro do ar, pela carícia da terra e do sol, sem sentir sequer o tempo passar. Fechou os olhos momentaneamente, deixando-se levar pelo cheiro delicioso que estava no ar (e o que quer que estivesse no ar estava a dar-lhe a volta à cabeça), e quando os voltou a abrir, já avistava o lago. Ele era magnífico, reluzente àquela hora. O rio que descia pela montanha encontrava ali uma ravina e caia numa cascata, formando um modesto lago, antes de voltara seguir o seu percurso, agora calmo e langoroso. Do topo da ravina, tinha uma visão privilegiada do lago, e conseguia ouvir à sua esquerda o rugir da cascata. Agora; deslizava com velocidade, cada vez mais velocidade, o ronronar da terra tinha-se transformado num rosnar, que se tornava cada vez mais intenso à medida que acelerava até que, de súbdito, silêncio. Tinha ultrapassado a borda da ravina, estava a cair de encontro à água. Voltou a ser homem, e mergulhou. Ao contrário do que acontecia na maior parte do ano, a água não estava gelada. Estava sim, deliciosamente fresca, e incrivelmente translúcida. Conseguiu ver ainda alguns peixes a fugir, espavoridos pela sua entrada estrondosa, e um par de tartarugas, claramente aborrecidas por terem tido o pequeno-almoço interrompido. Voltou à superfície para respirar, e – Céus – o ar estava mesmo delicioso nessa manhã.
Boiou um bocado, flutuando sem preocupações, e depois decidiu ir secar na margem. Deitou-se, de encontro à ilusão (a que muitos chamavam de realidade), sentindo-a com o seu corpo. O seu pé esquerdo estava irrequieto, por isso soltou-o transformando-o numa tartaruga para que fosse conviver com as outras que habitavam o lago. Sem distracções, embrenhou-se em si mesmo, tentando descobrir uma vez mais o porquê da sua existência. Desde que começara a meditar tinha descoberto uma miríade de coisas interessantes sobre si mesmo, quem era, desde quando é que era, o que eram os outros, entre muitas outras coisas sobre as quais nem sequer pensava enquanto andava adormecido. No entanto, ainda tinha uma dúvida por responder: Qual era a sua missão? Havia sido essa questão que, inicialmente, o tinha impelido a saber mais sobre si mesmo, a meditar e, mais tarde, foi essa mesma dúvida que o levara a abandonar a sociedade e a construir aquele retiro nas montanhas. Com o ermitério tinha vindo uma maior paz, e tinha conseguido ascender a profundidades insondáveis do Eu. Há medida que se ia conhecendo melhor, também o mundo e as suas intrincadas mecânicas lhe eram reveladas. Em pouco tempo começou a desenvolver miraculosos poderes que, embora úteis, não o ajudavam a responder à dúvida que o atormentava. Quer dizer, não era propriamente atormentado, o auto-conhecimento também lhe tinha trazido paz de espírito, mas sentia um desconforto, algo que não estava certo. Porque, não sabendo a sua missão, como sabia se não estava a falhar?
– Aposto que Tu te estás a rir aí em cima, a ver-me partir a cabeça quando a resposta está mesmo em frente aos meus olhos. Bem sei com és – Volta e meia dava-lhe para aquilo. Já que Deus não lhe dava respostas, mandava vir com ele. Era um resmungar bem-humorado, ele bem sabia que não lhe valia de nada. Mas sempre o ajudava a sentir-se um pouco melhor. Normalmente limitava-se a sondar-se, à procura de pistas, de indicações, mas por vezes sentia-se cansado de procurar sem nunca encontrar, e aí resmungava com Ele. Ultimamente tinha sido pior. Já tinha explorado todos os meandros de si mesmo, e sentia que a resposta à sua pergunta lhe estava escapar por uma insignificância, mesmo ali ao lado, a reluzir para ele, e no entanto….Mas, Deuses, se aquela manhã cheirava bem. Era um cheiro….Feminino.
Abriu os olhos de repente. Era um cheiro claramente feminino. Nem sabia como não se tinha apercebido antes. Enterrou uma mão na ilusão, e sentiu a floresta em volta. Continuava vazia. Só se… Já uma vez tinha acontecido. Por vezes o rio não se deixava ler, a não ser que ele mergulhasse nele. Atirou-se de volta ao lago, chamando o seu pé de volta no entretanto, e voltando a ter um corpo completo. Lá estava. Sentia claramente uma presença. Para lá do lago, mas apenas umas dezenas de metros para dentro do rio, lá estava ela. Não era o rio que lhe tinha tapado os olhos. Era ela que era perfeita. De tal modo perfeita para si que sua perfeição ressoava nele, sendo que quase não a distinguia. Mas, assim que a sentiu, soube quem ela era.
- Alma gémea – sussurrou.
Fragmentou-se num cardume, disperso de felicidade. Era ela! Era ela o sentido da sua vida! A sua busca tinha acabado, e a resposta era simples e perfeita. Anos, uma eternidade depois do inicio da sua busca, tinha acabado. Ela tinha vindo, depois de vidas e vidas a lutar para ser cada vez melhor, para não se deixar macular pela sociedade, para ser mais perfeito, ela tinha finalmente chegado. A sua resposta. De agora em diante, ia ser completo, uno, Feliz.
Não há silêncio
Há 2 anos